sexta-feira, 24 de abril de 2009

Futuros amantes

O meu primeiro texto...inspirado na canção de Chico Buarque.



Ela chegou à cidade ainda de madrugada. Quando abriu a porta do carro, invadiu-a o cheiro, ainda que distante, dos pinheiros das aldeias vizinhas – ou seria o cheiro das lembranças que deixara da adolescência, um cheiro a brincadeira, gargalhadas soltas e amores inocentes e verdes como as agulhas dos pinheiros que assolavam agora os seus sentidos.
Ao mesmo tempo que abriu a porta do carro, fixou o olhar naquele monte, e lá ao fundo, no castelo. Recordou então as últimas palavras que ele lhe dissera, dez anos antes, junto à janela dos namorados “O amor não tem pressa”.
Ela partira no dia seguinte, rumo ao seu futuro e deixando para trás outro futuro que haveria de viver vezes sem conta nas suas fantasias e nos lençóis transpirados em que acordava muitas vezes sobressaltada, gemendo o seu nome. Perturbada e ainda a tremer de paixão, estendia então a mão para o lado e confirmava a sua ausência, uma ausência que a fazia juntar as pernas e enrolar-se sobre si mesma, contrariando o movimento de entrega que o seu corpo fizera apenas uns minutos antes.
E no entanto, continuava a senti-lo, ali deitado ao seu lado, nu, a passear a mão pelo seu corpo lânguido e extasiado de prazer, enquanto lhe murmurava palavras sem nexo. Recordava o seu olhar, os raios dourados que iluminavam as suas pupilas, e as pálpebras semicerradas que a puxavam para outro mundo onde descansava, embalada pelo tom carinhoso da sua voz, até os dedos experientes dele a exigirem de novo junto de si.
Recordava o dia em que lhe declarara o seu amor. Não dissera uma só palavra, não precisou. Ela adivinhou-o no ritmo acelerado do seu coração e no tremor que se apossou do seu corpo quando a envolveu nos seus braços e a beijou. Sentiu-o menino no corpo que a queria agora como homem.
Assim selariam a paixão que os unia, apenas com sentidos e um silêncio confesso. As palavras viriam mais tarde, nas canções que ela gostava de lhe cantar ao ouvido, nas histórias que segredavam um ao outro e nas banalidades que não se cansavam de partilhar; tardes infindáveis em que estavam alheios a tudo, menos à sede que tinham um do outro.

Ela olhou à sua volta e acolheu a cidade, uma cidade diferente das outras cidades por onde passara, uma cidade pequena demais para o título que ostentava orgulhosamente e onde as pessoas ainda se tratavam pelo nome.
Sentiu-se uma estranha em casa. Era agora uma mulher madura, com uma carreira de sucesso e um duplex a dois passos do escritório, mas soube nesse instante que uma parte de si nunca partira, ficara ali suspensa naquela janela e em todas as ruas onde passeara com ele.
Trazia na bagageira e no banco de trás do carro, essa sua outra vida, cuidadosamente arrumada e etiquetada em malas e caixotes fechados com fita adesiva, a mesma fita que atirara para o fundo da bagageira e com a qual iria agora juntar todos esses pedacinhos de si.

Recebera na semana anterior uma carta com o carimbo da cidade e uma só palavra:
Vem

10 comentários:

YellowMcGregor disse...

O prometido é "de vidro". Melhor, é do mais puro e fino cristal. Soberbo.
Eu diria mesmo que nem o Vasco Pulido Valente poderia fazer uma crítica negativa. E como ele costuma dizer "a vida é como um funil que se vai estreitando de possibilidades". Por isso, que esses "Futuros Amantes" aproveitem bem cada dia "do final das suas vidas". Mas retiremos a carga negativa porque o teu texto é de esperança e corresponde à materialização dos nossos sonhos. Como diria Obama "Yes, we can".
Quanto a ti, recebeste certamente, "na semana passada", uma carta do Mundo da Literatura a dizer "VEM". Benvinda sejas, Sylvie

YellowMcGregor disse...

("Benvinda"???? Shame on me!...)
Bem-vinda sejas, Sylvie.
:-)

Sofisga disse...

Belo começo, sim senhor, gostei, podes continuar... Mas aposto que a carta continuava assim:

"Vem
Além de toda a solidão
perdi a luz do teu viver
perdi o horizonte

Está bem
Prossegue la até quereres
Mas vem depois iluminar
Um coração que sofre

Pertenco-te
Até ao fim do mar
Sou como tu
Do mesmo amar

Por isso vem
Porque te quero
Consolar
Se não está bem
deixa-te andar a navegar..."

Anónimo disse...

Esta lindo, podes continuar, e pensar em livros, se a Julia Pinheiro escreve um livro tu tb consegues.

Sónia

Anónimo disse...

Não vou comentar este texto em particular, pois já vi alguns textos teus e sei do que és capaz. Fico à espera de mais...

Beijinhos,
Sandra S.

Anónimo disse...

Que venha já o próximo! :-)
Vem!!!

Beijinho,
Sandra H.

YellowMcGregor disse...

S... S... S... S... e mais S...
Hummm vou tentar agradar a Sua Majestade e pode ser que ela me nomeie:
Sir Yellow McGregor :-P

SeiS ramoS de SorriSoS

jpsantarem disse...

Sim, sim, bonito... gostei!!!
Realmente, a janela dos namorados é um local especial para se estar perto... para se estar a namorar!!!
Bjs.

Anónimo disse...

A melhor forma de apreciar um texto, nomeadamente quando este se revela de tanta sensibilidade como este, é quando ignoramos tudo sobre o seu autor, qual a parte de si que projectou sobre o mesmo. Desta forma podemos apreciar o texto pelas palavras escolhidas, pela imagem conjunta e pelas sensações que desperta (muitas vezes abstenho-me de comentar textos de pessoas que conheço exactamente por isto).

Dito isto não posso deixar de dizer que gostei bastante, da forma como as imagens são criadas no nosso espirito, do desejo combinado com a ansiedade e a perpsectiva da vida que não foi vivida por se ter tomado um outro caminho. Talvez tenha gostado especialmente dessa parte porque todos os dias penso nisso, hoje por exemplo se agi de determinada maneira como teria sido se agisse de outra.
Acho que por cada vida que vivemos fica uma infinidade de vidas que não vivemos e a quem gostaríamos dar uma segunda oportunidade - porque tantas e tantas vezes essas outras vidas merecem.

Gostei Sylvie, vou tentar ir passando por aqui e comentando os teus textos, se não te importares claro :)

Pedro Farinha

Sylvie disse...

Obrigada a todos pelos vossos comentários, andei ansiosa com a reacção que o meu texto e a minha escrita pudessem ter, por isso nem consegui dizer nada...
Obrigada especialmente ao Pedro que comentou hoje pela primeira vez o meu blogue. Sê sempre bem-vindo ao meu cantinho, sabia que me visitavas e como sou uma fã absoluta dos teus textos do fórum, estava expectante em relação à tua reacção. Devo dizer que foste demasiado generoso na tua apreciação ;-) mas prometo esforçar-me para melhorar.
Como diz a minha Melissa, a escrita treina-se :-)