quarta-feira, 6 de maio de 2009

Vento


Começa com um sopro.
Pêlos que se eriçam, poros que intumescem e um arrepio que chega como cócegas e espalha-se em ondas intensas, como um tsunami, alagando a quietude do meu bem-estar. Estou sentada no sofá, olhos meio fechados, meio abertos, protegidos pelo conforto das paredes, mas cativos da violência que pressentem.
Lá fora, as folhas voam, rodopiam no ar e ouço um som sibilante que me lembra um lobo a uivar. As árvores dançam e agitam os seus ramos num ritmo frenético que nenhum músico conseguiria acompanhar e eu levanto-me, hipnotizada como uma serpente por esta música que ouço tocar. Encosto o nariz à janela e cheiro, absorvo a terra que se revolve e exala aromas secretos deixados por todas as vidas que a pisaram. São pegadas, corpos decompostos, secreções de gente e animais que ali deixaram o seu rasto e sinais de todas as suas vivências, passadas e presentes.
Estou lá fora, fundi-me naquela agitação onde posso dar largas à minha própria comoção. Grito sem que ninguém me ouça, choro lágrimas contidas, sentidas que se desintegram em múltiplas partículas espalhadas no ar; entrego o meu corpo às rajadas que o invadem e o atiram para onde querem, como um furacão, e solto gargalhadas e gemidos que são imediatamente abafados pelo eco da natureza desenfreada. Rendo-me finalmente diante de tanta imensidão, a do que sinto e abafo dentro de mim e a do fenómeno que presencio.

Ouço o vento lá fora, mas a verdadeira tormenta passa-se cá dentro.

10 comentários:

Sandra disse...

Gostei, gostei, gostei...

Vento, vento, vento...

Sabes o que o vento tem de bom? Sopra com força, mas também consegue ser gentil!
A tormenta não dura para sempre, também acalma e embala.

Este era o texto que eu esperava de ti. Parabéns!

Sandra S.

Anónimo disse...

Gostei bastante do texto e da forma como a acção decorre em paralelo (a do vento e a das emoções).

Mas (o mas é um vicio que apanhei recentemente) há duas pequenas coisas que eu mudaria:

A primeira é o inicio - porquê "Começa com um sopro" e não apenas "Um sopro". Sei que tenho a mania das frases curtas e que uma frase sem verbo nem frase é, mas acho que ganhava poesia e o paragrafo seguinte é extremamente belo.

A segunda questão é no final do penúltimo parágrafo. Acabas por comparar a imensidão do vento com o que sentes e abafas dentro de ti (de ti - personagem) e acho que a ideia é contrária. O vento faz libertar sentimentos à personagem, daí o intumescer dos pêlos, as ondas intensas, etc. Ou seja eu poria em oposição a imensidão do fenómeno com a pequenez da vida vivida (deixando espaço para se perceber que a vida sonhada é que era imensa).

Depois concluis da melhor forma - a última frase remata muito bem o texto.

Mas gostei muito e se faço estas pequenas sugestões é para te obrigar a pensar nelas, tens de escrever pela tua cabeça e pelo que sentes, mas sem criticas não se evolui.

Continua a Ficsyonar por favor.

P.S. A imagem também está muito bem escolhida.

Pedro Farinha

Sofisga disse...

Gostei Q.B. Transparente, tão transparente que dispensava a frase que o remata. Um vendaval de de beijos!

YellowMcGregor disse...

"... cá dentro.". Dentro de nós?...

Hummm... um "espelho" para o teu texto... Vou trazer duas frases que já me inspiraram:

“Eu penso agora, olhando para trás, que nós não combatemos o inimigo, nós combatíamos a nós próprios e que o inimigo estava dentro de nós”
In Platoon

“A maior de todas as batalhas está dentro de nós”
Frase promocional do filme Spider-Man 3

É um texto "pesado"... mas também "de peso". Que o vento traga mais textos teus.

Um Sopro de SorriSoS :-)

Sylvie disse...

É curioso como o texto desperta reacções tão diferentes e como pormenores que uns adoram são precisamente o que outros detestam.
Devo dizer que a última frase foi na verdade uma das primeiras que escrevi, tudo o resto foi desenvolvido em torno dessa imagem.
Quanto à última frase do penúltimo parágrafo, Pedro, eu quis realçar o modo como abraço, em fusão com o vento, a imensidão dos sentimentos que abafo e contenho no dia-a-dia. A força do vento é o meio que encontro para transmitir sensações igualmente intensas. É diante desse fenómeno que me posso reencontrar, reconciliar com tudo o que guardo cá dentro.

Anónimo disse...

Eina....Eu é que fiquei arrepiada!

A D O R E I

Fiquei logo presa à imagem!
Depois comecei a ficar arrepiada... e acabaste com uma frase curta, mas que diz muito...

Quero MAIS :-)
Um abraço bem apertado!
Sandra H,

YellowMcGregor disse...

Cara e Doce Sylvie
Acima de tudo penso que tu, como autora, não deves explicar aquilo que escreves. Como disseste: "É curioso como o texto desperta reacções tão diferentes...". Ora deve ser esse um dos objectivos dos textos literários. Isso é o que os tornam belos e únicos. E, na minha modesta opinião, acho que tu conseguiste: que cada um de nós, os leitores, façamos, com a nossa sensibilidade, a nossa "própria leitura"... Para que esse texto "teu" passe a ser também "meu" (nosso).
Terei conseguido expressar-me escorreitamente? Espero que sim…
Um ramo de SorriSoS

Sylvie disse...

Oi João, na verdade eu gosto de receber críticas sobre o que escrevo, pois esta rubrica FICSY tem um cariz criativo que merece a apreciação e o feedback dos leitores. A escrita treina-se, melhora-se e sei que posso aprender com escreve há mais tempo do que eu e inclusivamente com quem me lê. Além disso, prefiro explicar agora o que senti e quis deixar transparecer, a título pessoal, no meu texto, do que ver um dia as minhas palavras deturpadas, como acontece com as análises pseudo-psicológicas que muitos críticos fazem a autores já desaparecidos.
Claro que esta leitura pessoal não invalida todas as outras leituras que cada um poderá fazer dos meus textos, até porque todos vivemos de forma diferente experiências aparentemente iguais. É essa diversidade que mais me atrai na escrita.
Beijinhos

YellowMcGregor disse...

Olá de novo
Em primeiro lugar eu não falei nas críticas antes pelo contrário pois concordo em pleno que elas sejam feitas: por um lado é um direito dos “leitores” em segundo porque efectivamente ajudam no crescimento e amadurecimento do acto criativo.
O que eu quis dizer (ou talvez “criticar”) foi a explicação da “autora” sobre o sentido do seu texto porque esse é um “outro direito” dos seus leitores: porque o “acto criativo” não se esgota no “ponto final” que o autor colocou no seu texto… ele continua aquando da sua leitura. Quantas vezes não acontece que um determinado realizador faz um filme pela “sua leitura” do livro contrariando a opinião de muitos “leitores” com uma análise/interpretação diferente?... Quantas vezes um autor de um livro não criou um “best seller” sem “saber ler nem escrever”? Quantas vezes um autor não deixou um final em suspenso forçando ainda mais “leituras subjectivas e diferenciadas”?
Prontossss… era só isso :-)
1 B … (deixo ao critério de quem vier a ler: um Beijo, um Bouquet de Sorrisos, uma Boa-noite… ;-) )

betinha disse...

Li o texto e fiquei arrepiada também. Gostei, muito... teria tanto para escrever sobre o vento.... julgo que não saberia escrevê-lo como tu, nem as palavras poderiam expressar o que sinto, mas digo-te que me identifiquei com o teu texto... enfim, momentos!